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Série japonesa faz sucesso ao desafiar a cultura de trabalho excessivo no país – O Globo

TÓQUIO – Recentemente, enquanto o mundo sintonizava o último episódio de “Game of Thrones”, o Japão se deleitava em seu próprio mundo televisivo de fantasia. Nele, uma mulher ousa deixar o trabalho às 18h em ponto. A determinação de Yui Higashiyama, uma gerente de projetos de trinta e poucos anos cuja maior vontade é sair do trabalho e seguir até seu bar preferido para um happy hour, abala o escritório fictício de web design onde trabalha.
Uma supervisora e colegas de trabalho bitolados tentam frustrar seus planos. Quando sua equipe enfrenta um prazo aparentemente impossível de cumprir no episódio 9, ela deixa de lado o compromisso resoluto de equilibrar trabalho com vida pessoal e dramaticamente declara: “Vou fazer hora extra!”
A proposta era das mais arriscadas: pegar uma das obras mais louvadas dos quadrinhos e retomar seu universo décadas após o fim da história original. Mas Damon Lindelof conseguiu e fez talvez a melhor série do ano. Ao unir a obsessão com heróis ao conflito racial, “Watchmen” é tão perturbadora quanto urgente.
Sem alardes, a parceria da BBC com a HBO nos conquista mais a cada novo episódio e assusta ao mostrar um futuro próximo, catastrófico e totalmente plausível. Ascensão de líderes populistas, desemprego em massa, caos tecnológico, desastres ambientais. Tudo isso está lá, contado do ponto de vista de uma carismática família.
Se a primeira temporada de “Succession” foi apenas boa, a segunda fez da série de Jesse Armstrong uma das melhores produções no ar. Ao retratar a disputa familiar dentro de um conglomerado de mídia, a série expôs, com humor mordaz, a desconexão do 1% com o resto do mundo, com direito a uma virada eletrizante no final
Em sua segunda temporada, a série alemã da Netflix aprofundou as qualidades que a fizeram um fenômeno: tramas intrincadas , suspense em alta voltagem, ótimas atuações e mais linhas do tempo para desgraçar a sua cabeça. Raras foram as vezes que uma atração usou o conceito de viagem no tempo de forma tão interessante e complexa.
Roteirista de comédias como “Se bebe não case parte II”, o americano Craig Mazin criou provavelmente a produção mais instigante do ano com ” Chernobyl “, minissérie dramática da HBO. Sem sotaques caricatos, Jared Harris , Stellan Skarsgård e Emily Watson revivem o drama humano e político por trás do desastre nuclear ocorrido em 1986 na União Soviética .
Com a segunda temporada de “Fleabag”, Phoebe Waller-Bridge consolidou seu lugar como uma das criadoras mais originais da televisão (ela também está por trás de ” Killing Eve “). Ao fazer do telespectador seu cúmplice, Waller-Bridge compartilha os dramas de uma jovem mulher que não pede desculpas por ser quem é — e nos emociona e diverte no caminho. Ah, e falamos daquele padre ?
Anárquica e hilária, “Derry girls” é uma joia escondida na Netflix. Uma semi autobiografia, a sitcom de Lisa McGee aborda os conflitos na Irlanda do Norte dos anos 1990 a partir da visão ingênua de quatro adolescentes esquisitonas — e um rapaz inglês — que estudam juntos num colégio católico para garotas.
Após uma segunda temporada decepcionante, foi uma alegria ver ” True detective ” retornar à boa forma em 2019. Boa parte do sucesso é graças a Mahershala Ali , que nos brinda com uma atuação magistral como um detetive atormentado por um caso não resolvido em três diferentes fases da sua vida.
Correram com a trama! O roteiro ficou cheio de buracos! O final não fez sentido! Foi ridícula aquela cena do (incluir cena que você achou ridícula)!… Pois é, não faltaram críticas ao final de “GoT”, mas mesmo quem detestou, não falou sobre outra coisa . Foi o desfecho de um dos maiores fenômenos da TV, que certamente ainda vai render assunto.
Não é fácil assistir à minissérie de Ava DuVernay para a Netflix. Não pela falta de qualidade — ao contrário, a produção é impecável. Mas sim porque o caso dos cinco meninos negros e latinos, condenados injustamente por um estupro em 1989, evidencia a crueldade do racismo estrutural — e quão pouco avançamos desde então.
“Sex education” é a prova de que dá para falar de sexo para e com adolescentes de forma inteligente — mas incrivelmente divertida. Com franqueza, a série da Netflix mostra que, com todo o acesso à informação da geração Z, a adolescência continua sendo uma experiência tão dolorosa e esquisita quanto era nas comédias dos anos 1980.
Destaque no Globo de Ouro em janeiro, a minissérie da BBC ” A very english scandal ” chegou apenas este ano ao Brasil, via Globoplay. Com direção de Stephen Frears e grandes atuações de Hugh Grant e Ben Whishaw, a história do político que tentou matar seu amante é um irresistível estudo sobre a hipocrisia.
Bem que as “atuações” dos políticos na vida real tentaram tirar o brilho de Selina Meyer. Não conseguiram. Estrelada por Julia Louis-Dreyfus, ” Veep “, comédia da HBO sobre uma política sedenta por poder a todo custo, teve um “series finale” brilhante. Resta agora torcer para que surja uma nova sátira à altura dos absurdos da política no século XXI.
Dirigida pelo brasileiro Alex Gabassi, “The ABC murders” é mais uma produção de excelência da televisão britânica que chegou ao Brasil pelo Globoplay. Nesta versão para o clássico de Agatha Christie, quem se encarrega de viver o detetive belga Hercule Poirot é John Malkovich. Em mais uma grande interpretação, ele tira Poirot da caricatura e revela um fato surpreendente sobre o passado dele. A minissérie ainda atualiza a trama ao abordar a xenofobia, que segue rondando a Inglaterra do Brexit.

Higashiyama é a protagonista da série “Não vou fazer hora extra, e ponto final!” – um sucesso da televisão japonesa que conquistou o público em um país com uma ética de trabalho nacional perigosamente intensa e, por vezes, mortal.
O programa tem levado os profissionais a falar sobre suas dificuldades em encontrar o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, mesmo quando as maiores empresas japonesas e as autoridades governamentais os incentivam cada vez mais a pegar leve. Os criadores da atração dizem conhecer bem o problema.
—  Eu acreditava que dar um tempo significava ser preguiçoso. Demorei muito tempo para aceitar o fato de que não há problema em não trabalhar nos fins de semana ou à noite durante a semana — diz Kaeruko Akeno, autora do romance de mesmo nome que inspirou a série de TV.
Histórias parecidas são deprimentemente comuns. Os trabalhadores japoneses estão entre os que trabalham o maior número de horas no mundo todo. Em 2017, mais de um quarto da população empregada em regime integral empenhou-se em média mais de 49 horas por semana, segundo um relatório do governo, efetivamente trabalhando em seis dos sete dias.
Em alguns casos extremos, tal dedicação ao ambiente de trabalho pode levar à morte. Em 2017, dados do governo mostraram que o trabalho excessivo custou 190 vidas – na forma de exaustão, ataques cardíacos, suicídios –, um número que tem se mantido mais ou menos constante na última década.
Os motivos pelos quais as pessoas se entregam tanto ao trabalho são complexos, afirmou Yoshie Komuro, executiva-chefe da Work Life Balance, empresa de consultoria que ajuda empregadores a reduzir as jornadas extras de funcionários.
Ela explicou que, além das atitudes culturais relacionadas ao trabalho pesado, algumas organizações reduzem custos, confiando nas horas extras, e os funcionários aceitam as longas jornadas pelo pagamento extra e para agradar a seus superiores – geralmente, as promoções dependem mais do tempo gasto à mesa do que da produtividade propriamente dita.
O governo japonês tomou medidas para reduzir as longas horas e mudar as regras culturais que permeiam o universo laboral. Em abril, a tempo da estreia da atração na TV, uma nova lei entrou em vigor, limitando as horas extras a não mais do que 45 por mês e 360 por ano, exceto em ocasiões especiais. E o Ministério da Economia, Comércio e Indústria japonês promoveu um programa batizado de Sexta-Feira Premium, pedindo às empresas que liberem seus profissionais algumas horas mais cedo na última sexta-feira de cada mês.
Na atração, a esclarecida executiva-chefe da empresa de Higashiyama encoraja os funcionários a ir embora na hora certa. O que impede seus colegas de fazê-lo são outros colaboradores e supervisores que simplesmente não conseguem se conter – um sentimento familiar a muitos fãs do programa.
“Em última análise, o sistema sempre depende de alguém que vá até o limite. O problema é o sistema de trabalho japonês, em que o excesso é a norma”, escreveu um fã no Twitter. A ideia de que o trabalho requer sacrifícios pessoais está profundamente enraizada na cultura japonesa e exacerbou muitos dos outros problemas sociais do país.
O fato de a protagonista ser uma mulher confere mais drama à série, em um país onde as mulheres – particularmente as mães – enfrentam discriminação no mercado de trabalho. As mulheres que querem ser bem-sucedidas no mundo corporativo japonês geralmente se sentem mais pressionadas para provar seu valor, ao mesmo tempo que precisam equilibrar as demandas familiares, um dilema enfrentado por uma das personagens da trama.
“Apenas ao dizer: ‘Não vou fazer hora extra’, a heroína da série está cometendo um ato de rebeldia”, escreveu Tomohiro Machiyama, conhecido crítico de cinema, no Twitter. Referindo-se a Higashiyama, ele disse: “Ela está claramente mostrando uma estratégia para os problemas hoje enfrentados pelo Japão, desde os baixos salários até as baixas taxas de natalidade.”
No romance, a decisão de fazer hora extra leva à derrocada da protagonista: ela se torna viciada em trabalho, acaba em um hospital e perde um novo namorado, este com uma atitude decididamente mais relaxada quanto ao próprio emprego. Na série de TV, contudo, que foi ao ar em abril, Higashiyama está destinada a um final mais feliz, garantem os produtores.
Depois que um terremoto atingiu o noroeste da principal ilha do Japão (nenhuma destruição mais preocupante foi relatada), um anúncio emergencial interrompeu o fim da temporada. Não demorou para os fãs postarem no Twitter a piada de que o elenco tinha saído mais cedo aquele dia.
Akeno, que usa um pseudônimo para proteger a privacidade da família, baseou o romance em suas experiências pessoais na vida corporativa japonesa. Em seu primeiro emprego, ela atuou em um tipo de empresa que apelida de “empresa obscura”, uma expressão japonesa para ambientes organizacionais que exploram funcionários.
Quando Akeno se formou na faculdade, no início dos anos 2000, o Japão enfrentava uma recessão intensa e era difícil arrumar trabalho. Muitas pessoas de sua idade acabavam saltando de um emprego temporário para outro ou simplesmente desistindo do mercado de trabalho. Aqueles que atingiram a idade adulta na época “são inseguros quanto ao emprego. Temos medo de ser descartados, se não formos úteis às empresas”, revelou.
A situação mudou. Uma força de trabalho envelhecida e uma recente onda de crescimento econômico lento, porém relativamente estável, tornaram os profissionais mais valiosos. “Não vou fazer hora extra, e ponto final!” explora as mudanças na maneira de pensar o trabalho entre os millenials e seus contemporâneos japoneses.
Embora o governo e os profissionais mais jovens estejam fazendo pressão por jornadas mais curtas, os funcionários mais velhos, criados sob a crença de que o trabalho deve triunfar sobre tudo, parecem não se sentir confortáveis com a ideia de empenhar-se apenas 40 horas por semana.
Akeno contou que essa cultura permeou outras partes da vida japonesa. Quando ela deixou o trabalho para se tornar uma escritora, viu-se trabalhando praticamente sem parar. Quando teve o segundo filho, ficou escrevendo até a hora de ser levada para a sala de parto.
Ela disse que só parou para tomar conta do bebê. Por fim, disse, o corpo parou de funcionar propriamente e demorou dois anos para que se recuperasse completamente. “O que é considerado honroso não é quanto você atinge, mas sim como você consegue ficar sem descansar”, observou.
Os produtores da atração têm as próprias histórias relacionadas ao trabalho. Kasumi Yao, a primeira pessoa a indicar a série para a emissora japonesa TBS, não tira férias há 12 anos, afirmou. Yao teve a ideia para o drama depois de encontrar o romance de Akeno em uma livraria e se apaixonar pelo título, que tem um tom desafiador e atraente para os japoneses.
Quando a TBS anunciou o título do programa, alguns comentadores on-line ficaram perplexos. “Eles diziam coisas como: ‘Ir para casa na hora certa não é normal? Se algo tão óbvio serviu de base para um drama, o Japão está com sérios problemas'”, lembrou Junko Arai, segundo produtor da série.
Quanto a Akeno, ela continua trabalhando muito. Como a heroína de seu romance, ela nunca teve a intenção de ficar no centro de uma guerra sobre horas de trabalho. Só queria trabalhar um pouco menos e aproveitar a vida um pouco mais. Mas, graças ao sucesso do livro, está tendo dificuldade em se distanciar das tarefas.
“Falo da minha experiência apenas porque sinto que preciso”, justificou. E concluiu: “Gostaria que alguém pudesse fazer isso por mim.”
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