São muitas as dúvidas que surgem sobre o tema da habitação. Foi um dos temas de 2023 e continuará a ser em 2024, por isso, e em jeito de balanço, conversámos com Luís Mendes, geógrafo do CEG/IGOT-UL, investigador e ativista no movimento Morar em Lisboa, para perceber o contexto desta crise.
A crise de habitação traduz-se num aumento muito significativo dos preços da habitação e dos valores das rendas, sobretudo a partir de 2013, o que torna difícil para os grupos mais vulneráveis (ex. imigrantes, idosos, estudantes, famílias com baixos rendimentos, etc.) aceder a uma habitação condigna e suportar as crescentes taxas de esforço (parcela do rendimento para pagamento da habitação). O aumento do preço das casas e dos valores das rendas excedeu em muito o relativo aumento dos rendimentos das famílias, quase três vezes mais, ampliando assim o fosso entre o preço da oferta e a capacidade da procura de a esta aceder.
A atual crise de habitação tem raízes profundas na falta de investimento público em habitação e reabilitação urbana ao longo das décadas. A esta falta de investimento do Estado em habitação, há que acrescentar outras causas para uma diminuição muito significativa da oferta de casas a preços acessíveis: o excesso da turistificação e expansão do alojamento local; as isenções fiscais aos fundos de investimento imobiliário; as leis de reabilitação urbana que simplificaram procedimentos para uma rápida revitalização dos centros históricos; a liberalização da lei do arrendamento que gerou milhares despejos (a liberalização começou nos anos 90 mas atingiu o seu auge com a lei de 2012, o NRAU – Novo Regime de Arrendamento Urbano, vulgo “Lei dos Despejos”); a criação de programas governamentais para atracão de investimento estrangeiro em imobiliário (Residentes Não Habituais, Vistos Gold e Nómadas Digitais) e a atração de novas procuras residenciais internacionais endinheiradas e com elevado poder de compra, comparativamente aos portugueses.
As dotações orçamentais foram sempre diminutas e a canalização de dinheiro público por parte dos diversos governos foi sempre insuficiente para colmatar as necessidades de nova construção ou reabilitação do stock de habitação social ou pública. À exceção do Programa Especial de Realojamento (PER) do início dos anos 90, que teve como missão erradicar os bairros de barracas e realojar milhares de familiares em habitações condignas, o acesso ao mercado de habitação foi sempre garantido pelo sector privado. O maior investimento público para habitação aconteceu com a bonificação dos juros e os incentivos fiscais para a compra de habitação a partir de meados dos anos 80, com a entrada de Portugal na CEE. Entre 1987 e 2011, 75% dos cerca de 9 mil milhões de euros investidos foram canalizados para a Banca no sentido de bonificar o crédito à habitação e garantir acesso massificado à compra de casa própria.
Trata-se, essencialmente, de um diploma que tem como objetivo primeiro a extinção dos contratos de arrendamento celebrados antes da década de 90, sem garantia de direitos aos inquilinos.
O NRAU impõe um mecanismo de atualização de rendas que tem originado valores incomportáveis para muitos inquilinos, afetando as famílias de mais baixo estatuto socioeconómico, sobretudo nos centros históricos das grandes cidades de Lisboa e Porto, áreas-oportunidade para o capital imobiliário. Esta lei facilita a ação de despejo caso o senhorio alegue pretender a casa para sua habitação própria ou dos descendentes, ou quando alega desejar realizar obras mais estruturais.
Esses edifícios apresentam uma localização central privilegiada e tendo ainda associado o facto de apresentarem elevados graus de má conservação, conduz a oportunidades de especulação imobiliária tremenda, pois os promotores imobiliários e as construtoras vendem, depois do restauro, os imóveis a um preço muito acima pelo qual o compraram ainda devoluto.
Depois da promulgação da Lei de 2012, surgiram várias outras que contrariaram o sentido neoliberal daquela, mas que não conseguiram estancar os despejos, nem credibilizar, estabilizar e regular o mercado de arrendamento.
A promulgação do Decreto-Lei nº31, de 14 de Agosto de 2012, institui a nova lei do arrendamento urbano, também conhecida por Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), e que entrou em vigor em Novembro de 2012, ao abrigo do Memorando de Políticas Económicas e Financeiras – Plano da Troika – celebrado em maio de 2011 entre o Estado Português e o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, visando o equilíbrio das contas públicas e o aumento da competitividade em Portugal.
O mercado de arrendamento é dos poucos setores de atividade económica no nosso país que não é alvo de regulação, ou até de controlo, por parte de uma entidade governamental ou independente. Não há regulação quer do ponto de vista dos valores praticados, como das condições habitacionais dos locados que são arrendados, quer das condições contratuais entre senhorio e inquilino. Hoje, o coeficiente de inflação média anual publicado pelo INE é o valor indicativo para o aumento anual das rendas no mercado liberalizado, contudo os novos contratos apresentam aumentos muito superiores, por vezes superiores a 10%, isto porque o quadro regulatório o permite e não coloca nenhum limite ao aumento da renda.
Embora de atividade opaca, pouco clara e objetiva, sabe-se hoje que os Fundos de Investimento Imobiliário (FII) são uma das causas da crise de habitação pois utilizam a habitação como ativo financeiro num registo acelerado e especulativo, fortemente extrativo de mais-valia, de aquisição, remodelação e venda de património imobiliário, sem muitas vezes lhe acrescentar valor produtivo. Aliás, muita da propriedade intervencionada ou inserida neste tipo de ciclo de capital é transacionada em períodos de muito curta duração e ficam devolutos e fora do mercado durante anos, restringindo a oferta de habitação e, portanto, aumentando os preços.
Esta ação designa o que se tem apelidado de especulação imobiliária. Os FII estiveram isentos de pagamento de impostos na legislação nacional (Decreto-Lei 7/2015, de 13 de janeiro), ou seja, os FII não foram tributados na maior parte dos rendimentos auferidos. Os rendimentos típicos dos FII, em especial os rendimentos imobiliários e as mais-valias (que estavam sujeitos às taxas de 25% e 12,5%, respetivamente), deixaram de estar sujeitos a tributação. Todos estes programas fiscais permitiram a Portugal criar um paraíso offshore que oferece condições únicas de retorno sobre o investimento imobiliário, desprovido de quaisquer obrigações de pagamento de contrapartidas e impostos ao Estado. Em novembro de 2018, o Parlamento aprovou legislação que aprova o fim da isenção de IMT (Imposto Municipal de Transações Onerosas).
É difícil avaliar o peso que têm no mercado de habitação, mas sabemos que estes são exemplos de grupos que integram novas procuras residenciais internacionais que apresentam um poder aquisitivo muito superior ao médio português, quer do ponto de vista do acesso a residência, quer do ponto de vista do acesso e frequência do comércio e serviços na comunidade, pressionando os preços e o custo de vida em geral a subir. Os estrangeiros compram casas 58% mais caras do que os residentes em Portugal. A diferença de preços das casas vendidas a estrangeiros supera os 70% nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, afirmam estudos do INE. Estas novas procuras acabam por competir com os portugueses na compra de casa e o seu peso crescente condiciona os preços em alta por contaminação, uma vez que preferencialmente procuram habitação de luxo, em condomínios privados, ou em áreas nobres e históricas do centro das cidades o que eleva os valores do imobiliário e do fundiário.
A gentrificação não é um processo exclusivo dos centros históricos das cidades, expandindo-se para as periferias. Os novos produtos imobiliários que estão a surgir nestas zonas, seja por construção nova, seja por reabilitação urbana, sendo de luxo e orientados para a classe média alta ou classe alta são sempre indutores de gentrificação. Para haver gentrificação basta que se sinta uma tendência de recomposição social e classista na área em questão no sentido de se tornar mais nobre ou burguesa. Isso sente-se não só no mercado de habitação, mas também na paisagem comercial e no espaço público.
Falamos neste caso de desalojamento indireto ou invisível. A gentrificação ocorre por atração de capital privado e dinâmicas imobiliárias em áreas tradicionalmente desinvestidas ou típicas de residência e fixação das classes trabalhadoras e populares. A margem de lucro e de retorno para os promotores e construtores imobiliários é maior, pois compram muito barato património devoluto, fazem pequenas obras e vendem por quatro ou cinco vezes o valor de custo de produção. A consequência é que os valores no mercado imobiliário começam a subir galopantemente, pois os preços da habitação e os valores do arrendamento escalam com o aumento da procura residencial na área. O que vai acontecer é que os habitantes que vivem nestes bairros começam a sentir a pressão da subida dos valores da habitação (prestação da casa ou renda) e se os seus rendimentos não conseguem suportar essas subidas, a saída e expulsão do bairro tornam-se inevitáveis.
A habitação social, termo que existe desde o início do século XX, também denominada de habitação de interesse social, refere-se a um tipo de habitação geralmente inserida de forma concentrada em grandes conjuntos urbanos de bairros sociais ou inserida de forma dispersa no seio de parque imobiliário privado, mas cuja fração foi adquirida pelo Estado ou município posteriormente. É dirigida a pessoas ou famílias de baixos rendimentos e que vivam em condições habitacionais indignas (precárias, insalubres ou inseguras), ou seja, que tenham grandes dificuldades em garantir autonomia habitacional e aceder a uma habitação formal no mercado privado livre para satisfazer o seu direito à habitação em condições de dignidade humana. Por estar associado a algum estigma social, a designação “habitação social” tem sido substituída pelo termo “habitação pública”.
O objetivo da habitação acessível (termo mais recente e que se difundiu bastante na última década) é semelhante ao da habitação social, garantindo o acesso à habitação a preços compatíveis com os rendimentos do agregado, sendo que o valor de pagamento da prestação bancária ou da renda não pode exceder uma taxa de esforço de mais do que 1/3 do rendimento familiar. Destinam-se preferencialmente a famílias de classe média ou classe média baixa que estejam a ser afetadas pela crise de habitação. A habitação social está afeta propriedades do Estado, do município ou de outras autoridades públicas, enquanto as casas para habitação acessível podem pertencer a qualquer tipo de proprietário, público ou privado.
Neste momento as novas procuras residenciais vindas do estrangeiro distorcem o mercado local de habitação e arrendamento e não tornam atrativa para a indústria da construção a produção de habitação acessível. Por outro lado, o sector da indústria da construção civil foi fortemente afetado pela crise de 2008/09 o que torna difícil a sua reestruturação para valorizar projetos de reabilitação urbana, preferindo a nova construção, mantendo-se teimosa no business as usual. A acrescentar a isto, com o encarecimento dos custos dos materiais de construção e as lacunas significativas de mão-de-obra, será difícil ver os pequenos e médios empresários da construção civil a investir na produção de habitação a custo acessível, pois o custo de produção por m2, neste momento, não oferece oportunidade de crescimento.
As soluções passam pelo aumento de programas públicos municipais que pratiquem rendas condicionadas, apoiadas ou acessíveis (até um terço do rendimento do agregado familiar), mobilizando uma parte ou totalidade do património público devoluto com vocação residencial para este sector. O Estado e os municípios devem também incentivar fiscalmente a colocação de devolutos privados no mercado livre ou mesmo penalizar aqueles que se mantém devolutos, portanto, desprovidos de função social ou económica, especialmente em áreas de forte procura residencial insolúvel pelo mercado, como defende a Lei de Bases da Habitação (artigo 5). Isto permitirá regular indiretamente o valor das rendas por via do aumento da oferta. Deve também promover-se uma redução significativa da carga fiscal dos senhorios em função da durabilidade do contrato praticado, mas também do valor de renda por m2. Medidas como um controlo/congelamento ou teto de rendas, bem como apoios e subsídios financeiros ao inquilinato ou aos proprietários devem ser excecionais e de muito curta duração porque já vários estudos demonstram que a sua influência distorce os preços de mercado e faz regredir a oferta de casas com rendas acessíveis.
Independentemente do espectro político, existe hoje um consenso que o Estado é um agente fundamental e indispensável para a concretização do direito à habitação, com maior ou menos poder de regulação e intervenção no mercado privado. Constitucionalmente, é ao Estado que compete cumprir o direito à habitação. O artigo 65º da Constituição da República atribui ao Estado a competência para a resolução dos problemas da habitação promovendo, para isso, políticas públicas adequadas. Do nosso ponto de vista, e face ao texto constitucional, ao Estado incumbe intervir, inclusive, como regulador, promotor, provisor direto e como proprietário, em todos os níveis da criação de solo urbano, da reabilitação do edificado e da oferta de habitação especialmente para os grupos mais vulneráveis. Para tanto, o Orçamento do Estado tem de consignar anualmente as dotações suficientes para assegurar o financiamento adequado para acorrer às necessidades, quer de conservação e reabilitação de edificado existente, quer de construção nova.
Desde logo aumentar significativamente a oferta pública de habitação, de forma a regular o mercado e absorver a imensa procura insolúvel existente. Para isso é necessário que as câmaras municipais mobilizem e valorizem o património imobiliário municipal e promovam a sua manutenção ou reabilitação, de modo a salvaguardar uma utilização plena no cumprimento da função social da propriedade.
É necessária a concretização de Programas de Arrendamento Acessível e Social Municipal que aloquem a criação de uma bolsa de fogos para arrendamento a custos acessíveis e sociais, a partir do património municipal imobiliário disperso, fundamentalmente financiado por dinheiros públicos, não excluindo a criação de incentivos aos particulares para que coloquem património seu nesta bolsa. Também se podem articular medidas que permitam que as autarquias locais adquiram imobiliário devoluto a preços não especulativos, com o objetivo de o arrendar a preços acessíveis e sociais.
Sendo compreensível, e inevitável, a redução do investimento na construção de edifícios novos, destinados a habitação permanente, a reabilitação urbana surge como paradigma inevitável. Não só para preservar o património edificado, revitalizar os centros das cidades, garantir trabalho ao sector da construção, como também no ponto de vista do ordenamento do território, garante a contenção do perímetro urbano prevenindo a expansão desmesurada que não é sustentável.
A construção nova acabará por ser inoportuna pois a emergência de resolver a crise habitacional é de curto prazo. Não existem falta de casas em Portugal. Somos o país da OCDE com maior superavit de casas por família. O número de casas excede um milhão e meio o número de famílias. O grande problema é que grande parte destas casas são devolutas privadas e não estão no mercado por diversas razões.
Neste momento, com os resultados dos censos de 2021, sabemos que as casas devolutas estão na ordem dos 725 mil a nível nacional, 150 mil na Área Metropolitana de Lisboa, sendo que destas últimos, 48 mil se localizam na cidade de Lisboa e destas duas mil são propriedade do Estado Central e Câmara Municipal.
Há inúmeras causas que explicam a existência de um número tão elevado de devolutos a nível nacional. Em primeiro lugar, o desinvestimento estrutural em reabilitação urbana primordial à manutenção e conservação do edificado. Esta situação, associada ao congelamento das rendas em Lisboa e Porto, entre os anos 40 e sensivelmente os anos 90 do século XX, contribuíram também para descapitalizar os proprietários e senhorios, reduzindo a confiança do sector imobiliário no Estado e restringindo, portanto, a oferta de casas no mercado de arrendamento. O congelamento das rendas até 1990 em Portugal foi uma medida que teve um grande impacto no mercado de arrendamento, como a redução da oferta de imóveis para arrendamento, uma vez que muitos proprietários retiraram as suas propriedades do mercado devido à falta de incentivo financeiro para investir na sua manutenção e atualização. Além disso, muitos proprietários optaram por vender as suas propriedades em vez de as manterem para arrendamento.
Em segundo lugar, tem também sido apontada a perpetuação no tempo de um número elevado de casos de heranças indivisas que dificultam, por questões subjetivas de conflitos interpessoais, desinteresse, emigração, descapitalização ou mesmo abandono dos proprietários, a mobilização adequada dos devolutos para o cumprimento de uma função económica ou social.
Finalmente, a existência de uma parcela considerável de devolutos e vagos fora do mercado aumenta artificialmente os preços, pois faz escassear a oferta, pelo que seja razoável pensar que muitos dos devolutos fora da oferta do mercado se encontrem nessa situação motivados por uma perspetiva rentista e especulativa de homoeconomicus por parte de grandes proprietários, investidores nacionais ou estrangeiros, fundos de investimento imobiliário ou outros grupos dominantes de promotores, construtores, especuladores ligados ao grande capital imobiliário, de cativar a propriedade, restringindo e estrangulando a oferta, condicionando, assim, os preços e contribuindo para agravar e prolongar a crise de habitação.
Em geral, as medidas tomadas noutros países passam pelo aumento da oferta pública de habitação e pela regulação do mercado, atraindo os devolutos para a oferta pública ou privada de habitação e arrendamento a preços acessíveis.
Na Finlândia, em Helsínquia, quase um quinto das habitações pertence ao município, que as disponibiliza em regime de arrendamento de longa duração com o objetivo de assegurar a o direito à habitação e a diversidade social no seu território. 20% fazem toda a diferença.
Em Viena, o peso do sector público e cooperativo é significativo, atingindo os 40% do stock habitacional disponível, o que automaticamente funciona como mecanismo de regulação do mercado.
No Reino Unido, Dinamarca e Holanda é comum os novos empreendimentos imobiliários de classe média incluírem uma cota de 10 a 20% das casas dirigidas para grupos mais vulneráveis de classe baixa ou média baixa.
Ainda na Dinamarca, por exemplo, a lei impõe que os proprietários de imóveis residenciais que não ocupem a própria casa sejam obrigados a ocupá-la de outra forma. Assim, quando uma casa fica vazia por mais de seis meses, o município onde essa casa se localiza tem o poder de forçar os proprietários a colocar o imóvel no mercado de arrendamento, com um inquilino apontado pelo município, evitando-se, desta forma, fenómenos duradouros de falta de oferta.
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