Design Rio: portal faz viagem no tempo até o Rio de 1565 – O Globo

RIO — Tecnologias hoje disponíveis na web permitem que qualquer um observe o panorama atual da cidade do Rio e até “sobrevoe” suas montanhas, lagoas, ilhas e mar. Difícil mesmo é voltar no tempo e imaginar, a partir desses mesmos ângulos, como era a paisagem carioca há mais de 400 anos: com ocas em vez de prédios, verde no lugar do cinza do concreto e alagadiços e morros que não existem mais. Ilustrações e mapas da época da fundação da cidade são coisa rara, e, nem sempre, foram produzidos por quem pisou por aqui, baseando-se em relatos de viajantes. Mas um economista (apaixonado por história) e um designer especialista em 3D resolveram encarar o que parecia impossível. E conseguiram recriar o Rio de 1565.
Foram dois anos de pesquisa, que incluiu iconografia do século XVI, cartografia e cartas antigas, estudos de pesquisadores, mapas topográficos e comparações com locais da costa brasileira que ainda preservam uma natureza semelhante com a encontrada no Rio por franceses e portugueses. A partir dessas informações, Paulo Bastos, economista, e Pedro van Erven, designer, foram “restaurando” por meio de programas de computador esse Rio selvagem. Essa reconstituição, em três dimensões, pode ser vista tanto por meio de um aplicativo — pelo qual é possível acessar o antes e o depois de marcos da ocupação da cidade — como de um filme. Ambos fazem parte da exposição “Rio de Janeiro 450, a fundação da cidade e seus marcos históricos”, no Museu Histórico Nacional, que tem produção do Andrea Jakobsson Estúdio Editorial.
A partir de hoje, os internautas também poderão viajar nesse trabalho em 3D pelo site http://rio450anosapp.net/.
A Aldeia dos Tamoios, localizada em meio à mata do Flamengo e entre dois braços do Rio Carioca, é um dos sítios que ganharam destaque na obra. A orla, obviamente, aparece com o seu contorno original, sem o aterro. Pedro precisou “desenhar” a restinga, engolida pela urbanização.
— Essa reconstituição é conjetural. Não há muita iconografia daquela época. Por isso, para fazer a textura da restinga, usamos como parâmetro praias de outros lugares parecidos com o Rio — afirma Paulo, curador da exposição e, há 30 anos, autor de livros sobre a história de logradouros cariocas.
— Minha referência para a restinga foi a Praia da Guarda do Embaú, em Santa Catarina — acrescenta Pedro, que, ao usar programas para criação de jogos virtuais, deu linguagem de game ao aplicativo.
ANTES E DEPOIS EM IMAGENS
Os visitantes ainda têm a chance de, pelo sistema, comparar o passado com fotos aéreas atuais. E, para a melhor compreensão da história por trás de cada ponto de interesse, as imagens são acompanhadas de uma série de informações.
No caso da aldeia, o aplicativo explica que ali viviam cerca de dois mil índios, distribuídos em três tabas, ou agrupamentos, com quatro grandes ocas cada, entre dois braços de rio. Próximo dali, fica a foz do Rio Carioca. No passeio aéreo pelos primórdios da cidade, há antigas lagoas, como a do Boqueirão, onde está o Passeio Público, e a da Sentinela, próximo ao que hoje é a Cinelândia. Já a Lagoa Rodrigo de Freitas, que foi diminuindo com o tempo, é mostrada em um tamanho 40% maior, com o seu contorno original.
Outra representação inusitada é a Ilha de Villegagnon, que hoje abriga a Escola Naval e quase não lembra mais uma ilha.
— Eu tinha uma imagem que ela era meio como as Cagarras — conta Pedro.
Para retratar a ilha, ocupada pelos franceses em 1555, no entanto, foi usada como referência uma ilustração do livro do frade franciscano André Thevet.
— A Ilha de Villegaignon tinha dois morros, era cercada de pedras, não tinha praias nem água potável — ressalta Paulo, que incluiu na imagem em 3D o forte e as casinhas habitadas pelos franceses.
O arraial dos portugueses, entre o Pão de Açúcar e o Morro Cara de Cão, na Urca, que marca a fundação da cidade, é outro ponto que foi explorado pela dupla. A pequena vila contava com um forte, casinhas de taipa de mão — feitas com madeira e lama, sendo algumas com cobertura de sapê (técnica copiada dos índios) e outras com telhas —, um muro de defesa de taipa de pilão — tijolos grandes feitos de barro —, e uma paliçada na linha de mar, perto de onde hoje está o Bar Urca, com um grande portão de acesso. Na região, numa parte alta, também ficava a primeira capelinha dedicada a São Sebastião. Todo o arraial foi refeito sem ajuda de qualquer representação:
— Não há nenhuma ilustração. Sobre o arraial, as únicas fontes são duas cartas escritas pelo padre José de Anchieta, presente no dia da fundação da cidade e cronista do acontecimento. Ele depois voltou ao Rio e fez uma segunda descrição — lembra o curador da mostra, revelando que a parte mais difícil de todo o trabalho com Pedro foi recuperar o extinto Morro do Castelo como ele era há mais de quatro séculos.
UMA CIDADE QUE SAIU DO MAPA
O modelo em 3D, na verdade, começa com a chegada de Villegaignon, em 1555, e vai até a transferência da cidade para o Morro do Castelo, em 1567, quando os portugueses já haviam derrotado os franceses e os índios tamoios.
O filme e o aplicativo recuperam um Rio que desapareceu. Paulo e Pedro reconstituíram a topografia do Morro do Castelo e as construções dos primórdios do que foi o Centro.
— Recriamos as três edificações mais importantes: o Forte de São Januário, bem no alto, a Igreja Matriz de São Sebastião e o Colégio dos Jesuítas — conta Paulo, que, na falta de iconografia, refez o templo baseado em uma igrejinha do século XVI em Cabrália, na Bahia.
No caso do Colégio dos Jesuítas, a fonte foi um desenho do século XVIII a bico de pena — obviamente, foram retiradas na produção em 3D os acréscimos à construção. Para desenhar o traçado da Ladeira da Misericórdia e das três ruas que existiam no morro, ele se debruçou em pesquisas do geógrafo e historiador Mauricio de Almeida Abreu. A partir daí, foram colocadas casas de taipa de mão (algumas com cobertura de sapê e outras com telhas) e o muro que protegia a parte de trás do Castelo, oposta à Baía de Guanabara, conhecida como floresta e que podia servir para o avanço de inimigos.
Na viagem pela cidade que não consta mais no mapa, os visitantes e internautas podem fazer um voo sobre o Pão de Açúcar sem o bondinho, o Corcovado sem o Cristo e pela vegetação abundante. Aliás, as mudanças promovidas pelo homem na geografia do Rio são o que talvez mais chame a atenção do público ao manusear o aplicativo ou assistir ao vídeo:
— O Rio de Janeiro era paradisíaco, com florestas, campos, lagoas, rios e praias maravilhosas. Grande parte disso foi destruída para construir a cidade. Mas também sobrou muita coisa. O Rio ainda tem uma interferência forte da natureza, das montanhas. Espero que essa visão original do cenário natural da cidade ajude as pessoas a valorizar um pouco mais o que sobrou, a proteger o que temos — avalia o curador da exposição, inaugurada este mês e que permanece até o dia 6 de janeiro no Museu Histórico Nacional.
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